sábado, 9 de agosto de 2014

Faltará

O tempo não foi mais
do que um pedaço de vidro.
Partido, desfeito no chão de chuva.

Pó do tempo imperfeito,
as mãos sujas de terra
e as horas e os sinos
tocam em uníssono.

Faltará falar de ti.

Paula Raposo - Julho de 2014

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Vago

Um vago sentido toca as folhas por escrever.
As folhas que amarelecem com o tempo
e se pintam sem lápis nem caneta,
as folhas do princípio e as folhas do fim.

São amarelas as folhas sem tempo,
as folhas que não se escrevem.

Algum dia saberemos lê-las.

Paula Raposo - Julho de 2014.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Ainda não

Se o vento soprar fortemente
vêm comigo tempestades
e inexplicáveis luzes.

Atravessam oceanos,
vão de um lado ao outro da vida.
Sorriem mudos os surdos lamentos.

Não será o pó levantado
que me matará.
Ainda não.


Paula Raposo - Julho de 2014

sábado, 28 de junho de 2014

Fio

Desde que me lembro 
é um frágil fio de seda que nos toca.

Invisível no presente,
um veio de sangue ausente,
o passado a compasso.

Só sei do frágil fio que nos une
e nos torna tão magnânimos.

Presumo.


Paula Raposo - Junho de 2014.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Pai

O meu Pai faleceu no passado dia 12, ao final da tarde, no hospital onde estava há duas semanas.

Não têm sido dias fáceis, mas a vida continua como ele gostaria que assim fosse.

Até sempre, Paizinho.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Sem título

Sento-me na única cadeira da sala.

Cansada de aprender como somos impotentes
ou como não existem mais palavras a dizer.

Quando resta uma única cadeira
numa sala vazia de móveis,
esgotam-se as hipóteses de fuga.

Paula Raposo - Maio de 2014.

sábado, 12 de abril de 2014

Rostos

Tantos são os nomes e os rostos,
os anos e os objectos;
as datas, as fotografias,
as memórias das frases.
Os contextos e os pretextos.

Será o lento desenrolar de um facto
a suspender qualquer visibilidade
das coisas baças.

Paula Raposo - 10 de Abril 2014.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Espaços

São os olhos espaços em branco
que escurecem até as sombras,
murmúrios de outros olhares,
talvez imprecisos, desencantados
ou felizes do seu tempo.

Caminhamos pelas mãos que damos
em busca detalhada de outros olhos,
que de branco têm um manto,
que de saudade têm um futuro.

Paula Raposo - 7 de Abril de 2014.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Quisera

Quisera trazer de volta
as raízes das árvores da quinta,
bem como os animais de capoeira
e os cães que morreram envenenados.

Quisera voltar às palmeiras e cerejeiras,
ao campo lavrado e ao tanque com os peixes.
Quisera sair o portão grande,
atravessar a estrada de terra
e perder-me no caminho.

Quisera.
Não fora o pó acumulado
e eu poderia ter voltado e saído,
ao mesmo tempo que os outros.

Paula Raposo - 22 de Março de 2014.

terça-feira, 18 de março de 2014

Noctívago

Tornamo-nos noctívagos
no primeiro momento em que vemos a luz
e choramos.

É um instante abrupto
quando nos arrancam
o corpo do corpo da mãe.

Somos noctívagos
no desespero dos filhos
que largamos na vida.

Paula Raposo - Março de 2014.

sábado, 15 de março de 2014

Instinto

Deixa amadurecer a primavera
ao longo do rio.
Nas flores,
nos astros, nas tuas mãos.

Deixa olhar e ver as tuas sombras,
sem que o instinto se perca.

Paula Raposo - Março de 2014.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Canto

Ficar num canto do quarto a pensar,
descer as escadas em direcção à porta da rua
e, sem olhar para trás, recuperar outro tempo.

Resta a fraca imaginação nos relógios
ou nas ampulhetas.

Ir sem regresso é o quotidiano.

Paula Raposo - Março de 2014.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Sentidos

Imagina-se um lugar inexistente dentro de nós.

Pensamo-lo com todos os sentidos
e em todos os sentidos o perdemos.

Um lugar tem vida própria.
Não vive de imaginação,
aprisiona-nos a vontade e foge.

Imagina-se um lugar e fica-nos o silêncio.

Paula Raposo - Fevereiro de 2014.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Perdidos

Ficamos pelo caminho, perdidos.
Subimos e descemos todas as encostas
e não avistamos nenhum ser.

É de noite e cansamo-nos cada vez mais e mais.

Sentamo-nos no nada e não falamos,
nenhum de nós sabe o que o outro pensa.

Perdemo-nos para sempre.

Paula Raposo - 11 Fevereiro 2014.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Vozes

São muitas as vozes, agora,
insubmissas, reais, presentes
que deixam no seu rasto
a verdade que sabemos.

São tantas, tão poucas,
tão nada, tão tudo.
São as vozes incapazes.

Desfazem-se num pequeno sopro.

Paula Raposo - 5 de Fevereiro de 2014

sábado, 18 de janeiro de 2014

Filme

Diante de olhares, por detrás de palavras inventadas
criam-se espaços em branco, absoluta necessidade
de indagar os sorrisos sinceros e os rostos imperturbáveis,
como se da loucura se pudesse esculpir o desejo.

Volta-se atrás no caminho, quantas vezes necessárias,
até que no écran surge a primeira imagem de um filme mudo.

Paula Raposo - Janeiro de 2014.

sábado, 9 de novembro de 2013

Carta de amor

Hoje escrevo-te a última carta de amor possível.

Digo-te que os anos não passam como pensas, as palavras não se gastam como dizes, as pessoas não são aquilo que parecem.

Digo-te que só me resta uma carta recebida, uma palavra a devolver, um carimbo que o correio se esqueceu.

Fico por aqui. Onde sempre e nunca estou.
No lugar que me pertence.
O único lugar para uma última carta de amor possível.

Paula Raposo - Novembro de 2013.

domingo, 15 de setembro de 2013

Sem título

A ternura com que lês as entrelinhas das minhas reflexões
deixa-me um sorriso de afecto e de esperança,
donde solto a saudade da distância.

São os espaços em branco que dão colorido à minha vida,
é o mar, são as flores,
é a voz, são os momentos.

Na luz das minhas palavras reflecte-se o teu olhar.

Paula Raposo - Setembro de 2013.

terça-feira, 2 de julho de 2013

OMBREIRAS


Encosto-me à ombreira da porta

como que esperando - ou não - o voo dos pássaros

que sempre acontece deste lado do oceano.



Em silêncio, sem me mexer, respirando baixinho

é junto à ombreira da porta que eu espero

- ou não - as marés que sempre acontecem

deste lado da vida.



Por aqui passam esperados voos e marés

e sempre nos detemos esperando

o que de esperado nada tem

pois é tudo tão inesperado

quando nos encostamos às ombreiras das portas.   Paula Raposo - Junho de 2013.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Sem título

Cerram-se fileiras
na contramaré;
não falo de destino
nem de adjectivos,
muito menos de verbos
conjugações
advérbios ou conjunções.

É na contramaré
que adivinho o futuro
sem alternativa:
uma espécie em vias de extinção.

Paula Raposo - Março de 2013.